DO PAPEL AO CÓDIGO – WALTER HINDA*

DO PAPEL AO CÓDIGO – WALTER HINDA*

Por décadas, o comércio internacional de diamantes foi sustentado por estruturas tradicionais e documentos físicos que visavam garantir a autenticidade e a origem legítima dos diamantes. Contudo, essas medidas mostraram-se insuficientes para conter o fluxo de diamantes associados a conflitos, permitindo que recursos naturais fossem explorados para financiar instabilidade e violações dos direitos humanos em algumas regiões da África.

Reconhecendo a gravidade deste desafio, Governos, representantes da indústria e das organizações da sociedade civil, reuniram-se em Kimberley, África do Sul, em 2000, com um objectivo claro e inadiável: desvincular o comércio de diamantes do financiamento de conflitos e promover um ambiente comercial que respeitasse a paz, a segurança e o desenvolvimento sustentável dos países produtores. Dois anos depois, em Interlaken, Suíça, nasceu oficialmente o SCPK, estabelecendo mecanismos para interromper o fluxo de diamantes que alimentava conflitos e promover um comércio ético e responsável, capaz de impulsionar o desenvolvimento económico e social dessas nações.

A Evolução do Certificado do Processo Kimberley

O sistema do PK exige que cada remessa de diamantes brutos à exportar seja acompanhada por um Certificado do Processo Kimberley (CPK), um documento físico emitido pelas autoridades governamentais, que atesta que os diamantes brutos à exportar são livres de conflitos.

Inicialmente, em 1998, Angola implementou um certificado de origem para o comércio de diamantes, com o objectivo de garantir que apenas as pedras sob controlo estatal fossem comercializadas. No entanto, esse certificado era simples, composto por papel timbrado, selos e assinaturas, facilmente falsificável e incapaz de impedir o fluxo de diamantes de conflitos.

Com a implementação do PK, esse quadro mudou. Países que anteriormente usavam certificados básicos passaram a adoptar certificados mais seguros dentro de um sistema robusto. Hologramas, marcas d’água, códigos de série exclusivos e assinaturas de autoridades internacionalmente reconhecidas tornaram esses documentos praticamente impossíveis de serem falsificados ou adulterados. Essa evolução estabeleceu um novo padrão de controlo na indústria diamantífera, com o certificado de origem de Angola a servir de modelo da criação do CPK.

Apesar desses avanços, a persistência do CPK em formato físico em plena era digital revela fragilidade que compromete a segurança e a eficiência do sistema. O risco de extravio, o desgaste do papel ao longo do tempo e a complexidade da verificação em processos transfronteiriços mostram que é necessário um salto tecnológico. O futuro do PK parece apontar para a digitalização do CPK, embora essa transição exija um debate aprofundado e soluções inclusivas.

O primeiro Certificado de Origem Angolano, emitido em 1998, não possuía qualquer característica de segurança | DR

O Processo Kimberley em Movimento

Embora a digitalização do certificado ainda esteja em debate no seio do PK, alguns países como o Brasil, Emirados Árabes Unidos, e Rússia avançaram com soluções concretas. Durante a reunião Intercalar de 2025, nos EAU, o país anfitrião apresentou o sistema Verifico, uma proposta de plataforma digital que transforma o CPK em documento PDF/A assinado digitalmente, com QR code e compatibilidade móvel. Mais do que uma inovação técnica, trata-se de uma mudança de paradigma: o que há um ano era uma prova de conceito tornou-se uma solução operacional, já em testes de campo. Com este avanço, os Emirados mostraram que é possível combinar segurança, mobilidade e transparência no contexto do PK. Estes progressos demonstram que a digitalização é viável e já começou. Mas também revelam que a transição em escala global exige enfrentar desafios reais, sobretudo nos países com limitações tecnológicas.

Imagem composta de Certificados do PK de Angola, USA, UAE, DRC e Brasil com características de segurança. Reproduzida com cortesia do artigo “Why Kimberley Process Certificates Lack a Standard Format and Loyaut”, integrante da série Digging into the Kimberley Process, publicada pelo WDC, autoria de Mark Van Bockstael | DR

Desafios para a Adopção Extensiva do Certificado Digital

Embora a digitalização do CPK traga benefícios claros, como maior transparência, rastreabilidade e eficiência, essa transformação enfrenta desafios significativos.

O primeiro obstáculo é a infra-estrutura tecnológica desigual entre os países membros. Regiões com acesso limitado à internet enfrentam dificuldades para implementar soluções digitais eficazes.

Segundo, a segurança cibernética é um ponto crítico. Sistemas digitais exigem mecanismos robustos para defender informações sensíveis contra ataques, sobretudo em estados com infra-estrutura tecnológica precária. Além disso, o capital humano insuficiente em países menos desenvolvidos representa uma barreira importante. A falta de profissionais qualificados para operar e manter sistemas digitais e garantir segurança contra ataques cibernético pode atrasar o processo de transição, comprometendo o ritmo da adopção global.

Para superar esses desafios, será essencial um debate aberto, exigindo cautela e um esforço conjunto entre governos, indústria e organizações internacionais. Investimentos em infra-estrutura tecnológica e programas de capacitação profissional são fundamentais para nivelar o acesso e garantir que todos os países possam beneficiar-se das novas soluções digitais. No âmbito jurídico, a harmonização de legislações entre os países membros facilitará a aceitação de certificados digitais, promovendo um comércio mais seguro e eficiente. Isto permitirá que os avanços sejam resguardados e inclusivos.

Conclusão

O PK permanece como um pilar fundamental na promoção da paz e da ética no comércio de diamantes. Contudo, para continuar a responder aos desafios do presente e do futuro, é fundamental acompanhar as novas dinâmicas do sector às tecnologias emergentes, que inclui a transformação do CPK físico, que por décadas representa o compromisso global com a transparência, em formato digital, mais robusto e a prova do tempo.

Essa transição para a digitalização, não representa um abandono do passado, mas uma adaptação necessária para garantir que o sistema permaneça relevante no cenário actual, marcado pelas exigências dos consumidores das gerações Z e Millennials, que valorizam autenticidade, sustentabilidade e rastreabilidade. O futuro de cada negócio depende da sua capacidade de responder as exigências de cada geração. As escolhas e investimentos que a indústria fizer hoje determinarão se os consumidores da próxima geração continuarão a confiar e a comprar.

Os sinais estão dados. A indústria que não evoluir com responsabilidade, incluindo o suporte das tecnologias emergentes, será descartada por uma geração que já decidiu o que quer.

Do papel ao código, o compromisso do PK permanece inalterado: proteger a integridade do comércio global de diamantes, mas com a força da tecnologia e a precisão da era digital.

*Economista | Sénior Estatístico da CNPK